Páginas

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Liberdade do Arlequim



  O seguinte texto se propõe a dispor sobre as características arquetípicas do palhaço numa visão histórica e cultural.


  A origem do trabalho do palhaço remete aos bobos da corte que entretinham o rei. Dentro das castas medievais, o bobo da corte era o único que tinha o direito de se opor ao rei, criticando-o de forma cômica perante os presentes. Essa é uma característica bem peculiar considerando a ordem vigente da época. Isso o tornava um personagem muito distante de todas as outras regras sociais. O foco do bobo da corte era ele mesmo. Sua aparência, suas deformidades, seus defeitos. Ele servia basicamente para sustentar a superioridade alheia através de sua inferioridade pública. Diferente de determinadas piadas, a graça do palhaço não está no mundo, está no próprio palhaço.




  Para entender a simbologia do palhaço, vamos recorrer à uma antiga produção artística: o Tarot. O primeiro Arcano chama-se O Louco ou Tolo, mas na realidade ele não tem numeração, porque ele pode estar em qualquer lugar ao mesmo tempo. Ele representa o movimento caótico, não objetivo, interativo pelo seu movimento, mas natural pela sua espontaneidade.
  Uma forma sempre simples de compreender algo é através do seu oposto. O Arcano oposto ao Louco é o Mago. Enquanto o Louco conecta as Esferas do Ser e do Caos, o Mago conecta as Esferas do Ser e da Ordem. Isso significa que o trabalho do Mago é objetivo, manipulador, trabalha com métodos, fórmulas e regras para se chegar a algum lugar. Ele pensa dentro da Cause e Efeito. O palhaço interage de forma caótica, sem objetivar nada, tudo é uma consequência natural do seu contato caótico. Por que caótico? Porque não segue qualquer tipo de regras, estereótipos ou tradições; tampouco tem objetivos como riso. O riso é uma consequência natural da sua interação fora do comum. Entendido como atua o palhaço, vamos compreender o que forma o palhaço.
  No Arcano, o Louco é retratado como indo em direção ao precipício, enquanto um
cachorro puxa sua perna. À primeira vista, pode parecer que o cachorro está tentando salvá-lo de cair e morrer. Mas o precipício não é a morte, é apenas o desconhecido e suas infinitas possibilidades. O animal tem como único objetivo prender o Louco à terra, à segurança daquilo que ele já conhece. Mas o Louco não deseja a ordem, ele deseja o caos e tudo o que nele possa existir. Todas as possibilidades de ser que ele possa escolher para si. Assim o palhaço mergulha no público, no abismo desconhecido do interior de cada um, assumindo não ter controle sobre as respostas que terá, mas disposto a ver o que há no abismo da sua platéia e aberto ao que possa vir de lá, mas sem projeções ou expectativas do que virá a surgir desse contato.








  Existe uma segunda via psicológica trabalhada pelo palhaço que é o contato com a
Sombra, que resultará numa consequência ao seu oposto, a Persona. A Sombra pode ser entendida como nossas características ocultas da consciência que foram recusadas violentamente pelas repressões sociais e se tornaram aquilo que somos, mas não acreditamos ser e desejamos com todas as forças esconder do mundo. Ao contrário da Persona, que é exatamente a nossa "roupa de sair de casa", aquilo que queremos que o mundo veja em nós e, para tal, usamos para nos adaptar aos vários ambientes sociais com os quais interagimos e possuem regras específicas de comportamento, por exemplo.
  Compreendido isto, vemos que a ridicularização do palhaço é a forma simbólica de retirar momentaneamente uma máscara para nos tornarmos o que há de pior em nós. Nossos defeitos, nossas imperfeições, tropeços, quedas. E durante este momento, deixamos de ser nós mesmos para nos tornar outra pessoa. A pessoa que não reconhecemos em nós. Deixamos de ser o deus para ser mortal, de ser perfeito para ser falho. A pessoa que normalmente o mundo sequer dever suspeitar que existe. Nos tornamos a nossa sombra. A ridicularização do ego imponente.
  Para isso, expõe-se o corpo não malhado que se tem, as orelhas grandes, as roupas ridículas que te tiram da moda, se expõe em sua forma mais deplorável, ao mesmo tempo que essa forma perde o poder de lhe ferir. O que anteriormente fez com que ela se tornasse sua sombra. Essa transformação de um conteúdo anteriormente reprimido faz a sombra, aos poucos, se torne menos reativa, agressiva e autônoma. Talvez por isso pessoas que sabem rir dos próprios problemas, comediantes e os otimistas sejam tão sociáveis e bem sucedidos. Porque acabam por se tornar as pessoas menos reativas socialmente, já que não projetam seus erros nos outros ou se prendem à situações negativas.





  A relação do palhaço com os indivíduos ao redor é extremamente transformadora, pois
ela remete aos aspectos humanos e falhos. Numa sociedade dominada pelo arquétipo do herói solar invulnerável, uma figura falha desperta empatia instantaneamente. Pois mesmo que nossa persona seja heroica, nosso interior é um falho mortal. O palhaço nos lembra disso, sem sequer tocar no assunto. O palhaço não tem objetivo, ele apenas emana a si mesmo. Tudo que ele faz é mostrar suas falhas e isso ressoa com as nossas. Seu caos tem o poder de revirar toda a nossa ordem interna, refazendo ou desfazendo nossos valores, ideais, condutas. Assim como anteriormente ele rompia o paradigma da onipotência do rei criticando-o, hoje ele o faz servindo de projeção e identificação para aqueles que tiverem empatia com sua palhaçadas. Sua figura sempre empodera aos outros, seja pelo ato de ridicularizar-se ou inspirar aos outros com sua conduta excêntrica, que mostra que é possível desvincular-se das personas que usamos e aceitar uma parcela da sombra que temos.

  Esse texto é uma homenagem à apresentação do grupo Gema da Alegria no fechamento da VII Semana de Psicologia do Norte Shopping. Foi uma performance e uma palestra inspiradora. Aos que quiserem conferir o trabalho dessa turma é só clicar aqui.